“A coerência do Contrato Intermitente é a lógica do capital” por Patrícia Maeda

“A coerência do Contrato Intermitente é a lógica do capital” por Patrícia Maeda

no portal Justificando em 15/09/2016

justificando.com/2016/09/15/coerencia-do-contrato-intermitente-e-logica-do-capital/

 

Pensar em trabalho assalariado nos remete ao contrato de trabalho regido pela CLT, com jornada de oito horas e limite de 44 semanais. As relações de trabalho, no entanto, não foram sempre assalariadas nem regidas por lei nem com esse limite de horas. Basta lembrar que na história do Brasil temos muito mais tempo de trabalho escravo do que de trabalho assalariado. Como já sustentamos anteriormente:

O Brasil, uma ex-colônia escravocrata, experimentou a industrialização tardia no início do século XX, o que demandou o aumento da mão de obra urbana. Essa então nova classe trabalhadora iniciou um processo de organização sindical para fazer frente à superexploração do trabalho assalariado. Desse modo, podemos afirmar que a CLT consubstancia diversos direitos conquistados pela classe trabalhadora e não meramente concedidos pelo Estado [1].

A CLT teve repercussão inicial bastante restrita ao se referir apenas ao trabalhador urbano, pois a maior parte da população ainda era rural em 1943, o que se alterou com a crescente urbanização nas décadas seguintes. Dentre os direitos consolidados, estava a limitação de oito horas de trabalho por dia (art. 58), com direito a um descanso semanal de 24 horas consecutivas (art. 67). Com a promulgação da Constituição Federal, a questão ficou assim expressamente regulada:

Artigo 7º, XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Apesar disso, certo é que a jornada de trabalho no Brasil tem tido um tratamento jurídico bastante criativo, correspondendo ao avanço do neoliberalismo com a ideologia de flexibilidade[2]. Especificamente, por um lado, o contrato a tempo parcial (art. 58-A) foi regulado dentro de um espaço de constitucionalidade, embora não preveja a negociação coletiva para sua adoção, uma vez que não afronta os limites previstos no art. 7º, III. Por outro, a prática da escala 12X36, conquanto seja prevista em lei para algumas categorias e majoritariamente aceita pela jurisprudência, ultrapassa os limites de duração do trabalho previsto na CLT e na Constituição Federal. Portanto, no tocante à jornada de trabalho, houve dois movimentos distintos: um de redução e outro de prolongamento – nesse caso, sem o pagamento de adicional de hora extra. O argumento comum é o de corresponder às necessidades do mercado.

É inegável que tivemos nos últimos anos avanços sociais na legislação trabalhista, como no caso dxs trabalhadorxs domésticxs[3] e dos motoristas rodoviários, que passaram a ter legalmente reconhecido o direito ao controle de jornada. No entanto, o movimento na atualidade é outro: é o de retirada de direitos, o que se reproduz também na questão do horário de trabalho. Nesse contexto, chamamos a atenção para o potencial precarizante do Projeto de Lei 3.785/2012[4], de iniciativa do deputado federal Laércio Oliveira, que versa sobre o contrato de trabalho intermitente, “aquele em que a prestação de serviços será descontínua, podendo compreender períodos determinados em dia ou hora, e alternar prestação de serviços e folgas, independentemente do tipo de atividade do empregado ou do empregador”.

Essa descontinuidade é apenas um eufemismo para disfarçar o que ela representa: a alteração do conceito de tempo de trabalho contido no art. 4º da CLT[5], para retirar o tempo à disposição, o que fica evidenciado no art. 2o, § 1o do referido Projeto de Lei[6]. Além disso, representa uma total insegurança para o trabalhador que não terá jornada previamente fixada. O que isso significa? Bom, o próprio relator da tramitação em regime de urgência explica:

Como a prestação do serviço poderá ser variável, em dias ou períodos não previamente acordados, a proposta observa o requisito da previsibilidade da jornada ao dispor que é dever do empregador convocar o empregado com antecedência de cinco dias úteis em relação à efetiva prestação de serviço, viabilizando, ainda que o empregado comunique a impossibilidade de atendimento aquele período [7].

Então, o planejamento da vida do trabalhador, se fará diariamente, pois ele não terá direito a dia nem horário fixo de trabalho, pois desde que seu empregador o convoque para o trabalho com antecedência de cinco dias úteis, estará garantida a “previsibilidade”. Assim, de acordo com a convocação de seu empregador, você resolve se comprará sua casa, qual será o horário do colégio do seu filho ou se você almoçará, daqui a cinco dias úteis. Parece bastante razoável, não?

Não! O trabalhador tem direito à informação sobre seu horário de trabalho, bem como sobre seu salário, pois suas necessidades pessoais, sociais e familiares devem ser atendidas. Não há comutatividade no contrato intermitente, pois o empregado não sabe o quanto vai trabalhar, em que dias e, portanto, o quanto receberá como salário. Essa insegurança agrava sua subordinação econômica e precariza suas condições de trabalho, repercutindo em todos os demais campos de sua vida social.

O capital assim como Fausto, em Goethe, não tem limites. Assim, não basta criar uma exceção – grave, é verdade – à norma protetiva do artigo 4º da CLT, há que se alterar a redação do próprio artigo. Em 24 de fevereiro de 2016, uma nova e mais grave ameaça à questão do tempo de trabalho surgiu: o Projeto de lei 4.522/2016. Também de autoria do deputado Laércio Oliveira, este Projeto de Lei propõe a inclusão do § 2º na redação do artigo 4º da CLT, com a seguinte redação:

§ 2º Não se considera como de serviço efetivo o período anterior ou posterior ao registro de ponto, realizado para atender finalidade de deslocamento do empregado quando no local de trabalho, uniformização ou atendimento a condições higiênicas ou ainda para usufruir de benefício disponibilizado pelo empregados (grifamos).

A justificativa é a de que diversos setores da economia fornecem uniformes ou café da manhã aos empregados e não é justificável o remunerar o tempo despendido para isso[8]. No entanto, potencialmente essa redação ressignifica o tempo de trabalho, incorrendo no risco de uma interpretação extensiva sobre o que seria “benefício disponibilizado pelo empregador” para abranger, por exemplo, as tais salas de break. Para quem não conhece, as salas de break eram “disponibilizadas” pela rede de lanchonetes Mc Donald´s para que seus empregados ficassem ali “descansando”, enquanto aguardavam para se ativarem no trabalho apenas nos horários de maior movimento da loja (almoço e jantar), sem remuneração por esse “descanso”, numa prática que se intitulou “jornada móvel e variável”[9]. Essa prática foi amplamente rechaçada pela jurisprudência trabalhista, por ilegal, ao contrariar o disposto no art. 4º da CLT, e por inconstitucional, ao afrontar a dignidade da pessoa humana, dentre outros fundamentos. Por ora, foi retirado de tramitação o Projeto de Lei 4.522/2016, mas não há muito o que comemorar.

Isso porque como está para ser apreciada a tramitação em regime de urgência do Projeto de lei 3.785/2012, essas propostas devem ser ampla e publicamente discutidas (sim, porque o fato de ter sido retirada de tramitação do Projeto de Lei 4.522/2016 não elimina a possibilidade de ser reincluído em pauta). No entanto, os trabalhadores não sabem dessas ameaças nem participam do debate. As condições de trabalho serão nuclearmente modificadas, assim como as vidas das pessoas, que deixarão de controlar seus horários. Os “relógios de suas vidas” serão derretidos como na tela ‘A Persistência da Memória’ (1934) de Dalí. Existe coerência em levar adiante uma reforma trabalhista sem participação da sociedade, em especial dos trabalhadores, os maiores interessados no assunto? A tramitação em regime de urgência, assim como o próprio conteúdo do Projeto de Lei 3.785/2012, tem coerência, sim, com a lógica do capital.

Patrícia Maeda é juíza do trabalho no TRT da 15ª Região (Campinas/SP) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Foi escrevente técnica judiciária no TJ/SP e auditora-fiscal do trabalho do Ministério do Trabalho. Mãe de duas feministas mirins, esposa do Sá (seu companheiro em todas as aventuras) e corredora de rua. Vivencia de diversas formas a frase de Rosa Luxemburgo: “Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”. Mestra pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, defendeu sua dissertação com o título “Trabalho no capitalismo pós-fordista: trabalho decente, terceirização e contrato zero-hora”. Pesquisadora do Grupo de Pesquisas Trabalho e Capital – GPTC/USP.


[1] Sobre o tema, tivemos a oportunidade de escrever “O discreto charme da flexibilidade: o que o trabalhador tem a temer?”. Disponível em: http://www.justificando.com/2016/05/24/o-discreto-charme-da-flexibilidade-o-que-o-trabalhador-tem-a-temer-/. Acesso em: 3/9/2016.
[2] Ibidem.
[3] Gostaríamos de frisar a questão de gênero que permeia o trabalho doméstico. Por ser eminentemente feminino, permitimo-nos não adotar o masculino plural, de modo a não esconder o papel das mulheres trabalhadoras.
[4] O acompanhamento do trâmite desse projeto de lei deve considerar que ele está apensado ao Projeto de Lei no 6.363/2005, que versa sobre o tratamento isonômico dos trabalhadores temporários e está apensado ao Projeto de Lei no 4.132/2012, o qual, por sua vez, dispõe sobre a responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de trabalho temporário.
[5] Art. 4º – Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada.
Parágrafo único – Computar-se-ão, na contagem de tempo de serviço, para efeito de indenização e estabilidade, os períodos em que o empregado estiver afastado do trabalho prestando serviço militar … (VETADO) … e por motivo de acidente do trabalho.
[6] Art. 2º, § 1º É devido ao trabalhador o pagamento de salário e remuneração pelas horas efetivamente trabalhadas, excluído o tempo de inatividade.
[7] Parecer do Relator n. 3, pelo Deputado Silvio Costa (PTdoB-PE). Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1487458&filename=Tramitacao-PL+4132/2012. Acesso em: 12/9/2016.
[8] Conforme justificativa do Projeto de Lei. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1436007&filename=PL+4522/2016. Acesso em: 12/9/2016.
[9] Denúncia relata em diversas instituições, por exemplo, no Senado Federal. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2011/10/10/sindicato-acusa-mcdonalds-de-explorar-funcionarios. Acesso em: 12/9/2016.

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